Topo

Guia para você não fazer comentários xenofóbicos e homofóbicos sobre BTS

Camila Monteiro

26/05/2019 11h45

BT.. Que?????

Você conhece BTS?, o meme do Jin

BTS lotando estádios, BTS nos programas de tv mais populares, BTS no Grammy, BTS fazendo música com o seu artista preferido, BTS por todos os cantos. Quem acompanha a cultura pop e não conhece BTS está fazendo isso errado, não apenas porque eles estão dominando a indústria fonográfica mundial atual mas principalmente pelo impacto social que eles têm. Esse é o momento que alguém que nunca ouviu falar deles profere uma das seguintes frases: "to velho demais, nunca ouvi falar", "nossa ainda bem que não conheço esses japas", "credo, passo longe". Quem gosta do trabalho deles sabe muito bem do que eu falo. Gostar de BTS, o grupo, é extremamente fácil (aqui eu cito 7 razões para isso) pois eles são excelentes artistas com uma carreira que cresceu organicamente e com uma ótima discografia abraçando valores artísticos interessantes. Ao mesmo tempo é muito frustrante ter que ouvir sempre as mesmas piadas, comentários xenofóbicos, homofóbicos e todo um preconceito perpetuado pela própria mídia ocidental que insiste em colocar todos os artistas coreanos na mesma gaveta "fábrica de idols".

Desconhecimento cultural

BTS na capa da TIME (reprodução/TIME)

E essa frustração é fruto de um desconhecimento cultural histórico combinado com desinteresse em ultrapassar barreiras impostas pela nossa sociedade. Ninguém nasce desconstruído. Eu mesma antes de adentrar o universo kpop tinha má vontade de ouvir "esses coreanos". A língua era o primeiro obstáculo. Por que vou ouvir música numa língua que não entendo? Em seguida veio a famigerada fase "nossa, são MUITOS e TODOS iguais" (vergonha de ter dito isso um dia). Não eles não são todos iguais, eu que não tinha contato com a cultura asiática e portanto achava os traços similares, confundia etnias e proliferava comentários xenofóbicos. Ano passado entrevistei mais de 40 pessoas para a minha pesquisa – sou doutoranda em mídia, música e fandoms – e praticamente todos os entrevistados passavam por esse problema dentro das famílias. Pais e (alguns) amigos, não conseguem entender esse amor por "chineses" (nota-se que os asiáticos são sempre transformados em japoneses ou chineses, um total apagamento do sul da ásia e uma generalização carregada de preconceitos).

É importante entender que asiáticos não são brancos. E isso pode ser confuso pois dentro da própria Coréia existem problemas sociais sérios em relação a estética e embranquecimento. No entanto aqui estamos diantes de problemas distintos: o primeiro em relação a branquitude em questão (não é porque a pele deles é clara que eles são brancos diante do contexto histórico e social) e o segundo em relação ao racismo dentro da própria sociedade coreana. Esse é um assunto longo e muito mais complexo mas acho importante estabelecer essas diferenças.

"GAYPOP"

BTS em photoshoot (reprodução/Big Hit)

Além da questão racial, outro ponto que figura nas críticas constantes a qualquer grupo de kpop é a sexualidade e aparência dos membros. "São homens ou mulheres?", "GAYPOP", "Usam mais maquiagem que a minha mulher", entre tantas outras frases que constantemente escutamos e que refletem, novamente, falta de conhecimento. As demonstrações de afeto, proximidades, relacionamentos são completamente diferentes na cultura ocidental e oriental. E a relação deles com maquiagem idem. Aqui entra o fator idol. Os próprios integrantes de BTS foram criticados por usarem maquiagem e não serem "rappers de verdade". Ou seja, a discriminação existe lá também, em camadas diferentes e que, novamente, convergem no pop. Usar maquiagem é algo comum para artistas em qualquer lugar do mundo, no kpop isso se mistura com a própria indústria da beleza do país que é das mais populares e crescentes atualmente. A rotina skincare coreana popularizou de uma forma que hoje os idols mais famosos fazem parcerias com grandes marcas (BTS e Mediheal possuem uma ótima linha de máscaras faciais). Park Jimin e seu olho esfumado dão inveja e ideia de tutorial para muitas youtubers maquiadoras, e é normal vermos eles sendo constantemente maquiados pré-shows e eventos.

Jimin sempre com make impecável (reprodução/twitter)

Entre um show e outro é comum vermos os membros dormindo juntos, amontoados, e isso novamente vira motivo de estranhamento aos olhos ocidentais. Como assim homens dormindo juntos? Como assim esses abraços constantes? Novamente estamos diante das diferenças culturais e de uma masculinidade completamente diferente daquela que estamos acostumados. Aqui o kpop talvez entre no seu espaço mais interessante quando pensado dentro de uma sociedade machista e cada vez mais preocupada em "recuperar tradições". O visual do kpop quebra todas as tradições do que é um homem ocidental deve ser. Primeiro, ele tem traços orientais, o que já é um "desconforto" para muitos. Segundo, eles usam maquiagens, cabelos coloridos, acessórios e roupas "da seção feminina". Terceiro, eles trabalham com valores de dança e corpo de uma forma inesperada para quem vê de fora. Como assim eles dançam TANTO?? Tudo isso bate de frente com os moldes que estamos acostumados. Essa confusão gera curiosidade, interesse e ódio. Muita gente quer mais daquilo, se identifica e vira fã. Outras se incomodam e não sabem lidar com tanta diferença.

Contexto Cultural e Estigma Idol

Tudo isso precisa ser compreendido também dentro da própria cultura deles, onde existem sim diversos problemas dentro da indústria do kpop – assim como em qualquer outra do entretenimento -, existe racismo, sexismo, exploração e muita homofobia velada. Todos esses problema sociais fazem com que a Coreia seja um dos países com maior taxa de suicídio no mundo. E aqui entra BTS.

BTS em Idol, celebrando amor próprio apesar das críticas (reprodução/Big Hit)

BTS não tem apenas que ultrapassar a barreira da língua, da raça e do estigma idol, eles precisaram quebrar os moldes da própria indústria do kpop para se tornarem o que são hoje. Foram muitos os perrengues que o grupo passou para atingir o nível de sucesso que eles tem hoje. Bangtan foi formado por uma empresa pequena, com a ideia inicial de ser um grupo de hip hop (rappers). O grupo foi criado por causa de Kim Namjoon (RM), que na época já fazia sucesso na cena do rap underground. Com mudanças no meio do caminho, eles se tornaram um grupo de kpop/idols, o que gerou uma onda de críticas. Por que rappers estão se vendendo para o pop??? Como se não houvesse barreira suficiente no caminho deles, o fator pop chegou para diminuir o trabalho feito mais ainda. Logo que BTS debutou eles foram constantemente boicotados por fãs de grupos estabelecidos, programas de TV e viraram motivo de chacota por terem um estilo completamente diferente dos idols de sucesso. Mas uma coisa sempre chamou bastante atenção e virou o principal fator de sucesso do grupo: as letras das músicas. Bangtan debutou com a música No More Dream (vídeo abaixo), cuja tradução literal é "Não há mais sonho". E assim, com músicas sobre revolta, angústias e problemas sociais coreanos eles construíram um início de carreira bastante revolucionário para os padrões em que estavam inseridos. Na canção eles repetem constantemente, Qual é o seu sonho??? Desde o início BTS sempre questionou o status quo sem nunca esquecer da parte lúdica, do que, afinal de contas, nós sonhamos e desejamos.

Letras, Músicas & Impacto social

No decorrer de toda carreira do grupo, que debutou em 2013, os álbuns todos contam histórias e mostram o crescimento deles de forma bastante orgânica. Percebemos o crescimento deles, literal e metafórico, diante dos nossos olhos através das músicas. Antes, todos muito novos, a crítica era a base do grito, das roupas pretas, das expressões furiosas. Com o passar do tempo, os problemas seguiram se tornaram mais complexos e essas nuances foram refletidas em álbuns mais adultos, mesclando momentos bonitos com conflitos internos, sem nunca passar pano nos problemas sociais cotidianos mas ao mesmo tempo nos dando esperança e asas (Wings, considerado O grande álbum do grupo é um marco na carreira deles, tanto musicalmente quanto esteticamente).

Abaixo selecionei alguns vídeos com músicas que possuem letras interessantes e que falam sobre as dores cotidianas que enfrentamos.

  • Whalien 52 (The Most Beautiful Moment in Life pt. 2)

Whalien 52 já é inteligente no título. Whalien é a junção de whale + alien (baleia e alien) e 52 é a frequência em Hertz, muito acima da vocalização da maiora das espécies de baleias, o que a torna única e solitária. A baleia é descrita como a mais solitária do mundo. Na canção, escrita por Namjoon, o grupo aborda questões de pertencimento, autoaceitação e da importância de usarmos a nossa voz (a tour Speak Yourself nunca fez tanto sentido).

  • Paradise (Love Yourself: Tear)

Paradise fala sobre a maratona que é viver, como isso consome a nossa vida e que precisamos parar. É okay não ter sonhos, é okay ter momentos de infelicidade e não saber o que estamos fazendo. Namjoon canta, que independente de quem somos, onde estamos ou pra onde vamos, we deserve a life, nós merecemos viver, e não podemos esquecer disso.

  • Tomorrow (Skool Luv Affair)

Escrita e produzida por Yoongi (com Namjoon e Hoseok), Tomorrow retrata o valor da pausa, de parar e refletir sobre o que está acontecendo e que caso as coisas não estejam bem, elas vão passar. Em uma sociedade onde tudo acontece na velocidade da luz e mal percebemos o que acontece diante de nós, Tomorrow nos faz pensar em quem somos agora, nesse exato momento e de que sempre temos o amanhã.

  • Mikrokosmos ( Map of The Soul: Persona)

A música mais recente do grupo, e que fecha a tour atual – Speak Yourself – reitera que somos todos diferentes, cada um sua própria estrela e que brilhamos de formas distintas. Mikrokosmos mostra o crescimento orgânico do grupo pois parece que precisamos passar por todas as fases anteriores, de entender o nosso lugar, valor, medos e anseios para chegarmos aqui, em momento catártico e podermos gritar YOU GOT ME, I GOT YOU. Agora somos capazes de enxergarmos as nossas luzes e juntos brilhamos cantando NANANANANA.

  • Spring Day (You Never Walk Alone)

Deixei Spring Day por último pois a música é, sem dúvidas, o trabalho mais marcante que BTS já fez. Visualmente Spring Day é provavelmente o melhor videoclipe, na lista extensa de obras que o grupo já criou, com uma estética diferente, sem passos de dança e muitas referências culturais. A principal delas, também presente na letra, é a homenagem às vítimas do desastre do Sewol Ferry, que aconteceu na Coréia do Sul em 2014 matando mais de 470 jovens e crianças. O acidente despertou a sociedade para uma série de assuntos sociopolíticos, especialmente o descaso do governo com o resgate do barco em questão. Spring Day além de fazer referências claras – e outras mais sutis e metafóricas – seja na montanha de roupas representando os jovens ou no carrossel (eles estavam indo passear num parque) e sapatos (após a tragédia, sapatos com mensagens aos jovens foram deixados na volta da Ilha onde ocorreu) que Jungkook e Jimin estão e carregam, respectivamente, a letra da música é uma ode a alguém que não está mais entre nós.  A canção se tornou uma espécie de refúgio e hino em tempos de perdas e tragédias. Não a toa está no álbum You Never Walk Alone, "Você não anda sozinho".

Essas são apenas algumas das músicas de BTS que trazem mensagens importantes e que tocam as pessoas, que ao conhecer e se aprofundar no catálogo e histórico do grupo, acabam se tornando fãs. Depressão, ansiedade, amor próprio, Bangtan toca nas nossas feridas e dores cotidianas de uma maneira distinta, combinando valores da dança, da memória, de uma cultura completamente diferente e de uma língua que não falamos. Adentrar no universo deles é conhecer um mundo novo e aprender a aceitar o desconhecido. Seja uma menina de 14 anos indo para a escola, uma jornalista de 29 (eu) ou meu pai, com 54 anos e médico, BTS é capaz de ensinar todo mundo, em fases diferentes da vida e com perspectivas diversificadas que nunca é cedo ou tarde demais para quebrar nossos preconceitos culturais e sociais e apreciar um conteúdo de qualidade. A música é uma das melhores formas de saírmos das nossas bolhas cotidianas, basta a gente querer estourá-las.

Jimin estourando a bolha em Serendipity (reprodução/twitter)

Sobre a autora

Camila Monteiro é jornalista e estudante de doutorado em música, mídia e fandoms. Ama cultura pop e é muito fã de Bangtan. Sua vida se divide em antes e depois que ela viu Park Jimin na sua frente.

Sobre o blog

Nesse espaço discutiremos o Universo Kpopper: fandoms, bandas, debuts, disbands, MVs, álbuns, tours, coreografias, Coréia e tudo que o K-Pop nos oferece. Entre visuals, rappers e vocalistas, ultimates e bias wrecker estabelecido(a)s, vamos refletir sobre as diferentes gerações do pop coreano, a influência na moda, beleza, cultura e como o K-pop muda a vida das pessoas.

KPop Pop Pop