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Não é só uma piada: como a cultura troll e a busca por likes afeta os idols

Camila Monteiro

14/10/2019 19h40

* Se você não está num bom momento, os assuntos (discurso de ódio, suicídio) que tocarei a seguir podem ser gatilhos, portanto não indico prosseguir com a leitura.*

**Todos os vídeos que coloquei no decorrer do texto falam sobre saúde mental/perdas**

 

Esse é sem dúvidas o texto que mais relutei em escrever e consequentemente o mais difícil deles. Falar sobre saúde mental nunca é simples e muito menos fácil, nos dias atuais a tarefa parece ainda mais pesada apesar de extremamente necessária. Seja a caixa de comentários desse blog, um desconhecido entrando em uma conversa no twitter ou alguém que era nosso colega de escola e escreve um textão no facebook, as pessoas parecem sentir uma necessidade quase física de emitir opinião sobre tudo, o tempo inteiro, mesmo que não façam ideia alguma sobre o que estão falando. Como jornalista que trabalha com kpop eu lido com isso direta e diariamente. Eu posso trazer pesquisas, números, fatos e quotes e as pessoas seguirão comentando "mas isso é mulher ou homem?", "que pessoa feia", "chinês mediano", entre tantas outras ofensas, que parecem pequenas e desimportantes, mas que somadas a outras tantas críticas espalhadas por aí, se tornam o lugar comum e viram estigmas difíceis de serem desconstruídos. No início do mês escrevi sobre xenofobia no kpop (aqui) e embora vários comentários tenham sido positivos, percebi que muitos deles defendiam o "gênero" perante os trolls que repetem o mesmo discurso preconceituoso e repetitivo. Eu encaro como um teste de resistência e a principal questão que fica é: por que essas pessoas fazem login e se prestam a escrever sua opinião sobre algo que elas nitidamente não entendem, e pior, não gostam? 

Parece óbvio ser altamente contraprodutivo disseminar algo que não gostamos. E não falo de um filme que achamos ruim, de uma música de mau gosto ou de uma campanha publicitária ofensiva, pois senso crítico – aqui entramos num assunto tão difícil de discutir quanto, pois ser crítico em 2019 é um desafio muito mais complicado do que parece –  é logicamente importante e desejado para que exista diálogo e discussão sobre os assuntos, gerando assim consciência e crescimento político, social e cultural. Tão importante quanto ser crítico em um mundo fragmentado como o nosso é compreender que a forma como emitimos a nossa opinião faz toda a diferença. Além, é claro, de refletir se precisamos mesmo opinar sobre algo que não conhecemos. Qual a razão de você odiar kpop? Por que motivos a maquiagem e as roupas de homens com 20 e poucos anos incomodam tanto? Você realmente vê graça em "zoar" culturas milenares só para ganhar meia dúzia de likes na internet? Entendo que discutir tudo isso em tempos de Trumps, Bolsonaros e Boris Johnsons e seus respectivos fandoms seja tão eficaz quanto conversar com uma parede, mas gosto de acreditar que as pessoas que chegam nesse blog (hora de lembrar que sim, o blog K-POP-POP-POP é sobre… kpop) transcendem esses obstáculos cotidianos e já se viram diante de situações similares, onde a gente respira fundo e tenta responder educadamente, com links e algum conhecimento (a seção de comentários do meu post é um bom exemplo).

E até então eu toquei apenas no ódio externo que o kpop enfrenta. Porém ao falarmos de kpop para uma pessoa que não gosta, o assunto é encerrado rapidamente pois a indústria é vista quase como uma praga, uma "doença". Ih, kpopper??? To fora. O primeiro erro ao passarmos por cima dessas piadas cotidianas é justamente jamais modificar o status quo: alguém fala mal de kpop e a gente ri e muda de assunto, fica indignada por dois segundos e muda de assunto ou sequer tocamos no assunto pois nem queremos perder o tempo discutindo com pessoas que não querem ouvir o que a gente tem a dizer. E se pararmos para pensar, isso é bastante triste. Nesse momento imagino alguém no twitter ou nos comentários dizendo "isso é só kpop, não é tão importante, relaxa". E não, não é só kpop. Assim como não é só uma piada. O seu tuíte "lacrador" em cima da aparência de idol x, com mais de 30 mil likes não é apenas mais um no meio de tantos outros. Ele foi replicado e reproduzido centenas de vezes, possivelmente printado e está circulando em outras redes sociais. Ao fim, milhares e até milhões de pessoas leram a sua piada, incluíndo a pessoa que você estava zoando. Há pouco mais de um mês, saiu uma entrevista ótima, apesar de difícil, com Jesy Nelson, uma das integrantes do girlgroup britânico Little Mix. Na entrevista Jesy comenta que após o grupo vencer o X Factor em 2011 ela entrou numa crise séria de depressão e ansiedade por causa da quantidade de comentários horríveis sobre ela. A cantora explica que não conseguia parar de ler o que as pessoas falavam sobre ela, e que aquilo foi consumindo a sua vida de uma forma que ela tentou se matar. A história de Jesy felizmente não acabou mal como poderia, pois ela buscou ajuda e conseguiu superar, mas ler alguém julgando o corpo, cabelos, roupas, voz, além de absolutamente todos os passos que ela dava gerou traumas e distúrbios que ela jamais pensou que teria.

Sulli, ex-integrante da excelente f(x), um dos grupos mais diferentes e interessantes que o kpop já produziu, também foi vitima constante de mensagens horríveis dos knetz (termo utilizado para se referir aos korean netizens, internautas coreanos). Desde as roupas que ela usava ou deixava de usar, passando pela aparência física (gorda demais, magra demais, cansada demais, exausta demais), até os lugares que ela frequentava e que geravam notas sensacionalistas sobre a vida pessoal dela. Aos poucos, de trollagem em trollagem, comentário anônimo aqui, ofensa pesada ali, isso se tornou insuportável para ela. Por razões não muito claras, ela saiu do grupo e focou em sua carreira como atriz. F(x) passou mas infelizmente o ódio direcionado a ela não. Há pouco tempo escrevi sobre o grupo na seção Rewind aqui do blog, e fiquei muito feliz ao ler sobre os posicionamentos, personalidade, e como Sulli falava abertamente sobre saúde mental, da dificuldade das mulheres terem voz na indústria do kpop e de como comentários maldosos que ela recebeu durante toda sua carreira afetavam a sua saúde mental. A mídia de forma bastante sensacionalista tratava ela como uma figura polêmica e rebelde e dessa forma, colaborou na construção da imagem negativa que o público tinha dela. Infelizmente hoje foi confirmada a morte de Sulli, e o maior desserviço que podemos fazer é transformar a morte dela em mais um número, uma generalização, um outro estereótipo em cima da cultura asiática.

Precisamos falar sobre como depressão e ansiedade são doenças que necessitam de tratamento adequado, que não é uma fase ou bobagem, que pedir ajuda é importante e necessário para sair dessa situação e que ter acompanhamento psicológico não somente não é um problema, como deveria ser o comum nas nossas vidas. O contexto em que estamos inseridos tem um peso muito grande em ditar a nossa saúde mental; seja a repetição de padrões ou a completa falta deles, o mais importante, sempre, é entender que não estamos sozinhos e que é possível sair da situação em que nos encontramos, por pior que ela pareça ser. E sim, é muito triste ver um idol, alguém que muitos enxergam como exemplo de força e superação, tirando a sua própria vida. Dá uma sensação de impotência e vazio enorme além da ideia de que tudo que discutimos e falamos será esquecido até outra pessoa morrer, e assim tudo virar uma matéria mal escrita em tom fúnebre em busca de cliques num grande portal.

A culpa é da empresa? Da sociedade coreana? Da seção de comentários da Naver (Google coreano)? Da indústria "maquiavélica-fábrica-de-idols" do kpop? Da cultura stan twitter que cancela e descancela pessoas na velocidade da luz? Da mídia coreana que expõe diariamente a vida dos idols? São muitas perguntas e a resposta é doída em todas elas, pois todos nós acabamos contribuindo para essa cultura troll, lacrativa e cheia de opiniões sobre a vida alheia baseada em três parágrafos de algo que desconhecemos. Seja dando views no vídeo polêmico do youtuber x, apertando no site mostrando fotos de péssimo gosto tiradas de forma ilegal dos idols, ou boatos disseminados e replicados na velocidade da luz no twitter; passamos por essas situações diariamente e muitas vezes não nos importamos pois não é com o nosso idol do coração, não nos diz respeito, "eles que lutem". Essa luta no entanto, é sim de todos nós, pois estamos lidando com a vida das pessoas, reais, que independente de terem nascido em uma sociedade completamente diferente da nossa, possuem sentimentos, tristezas, doenças e fraquezas, e aquela piada inofensiva com 15 mil likes, somada a outras tantas coisas, pode ter um peso enorme na vida de alguém.

Ao abrir essa página em branco eu pensei em apenas trazer dados sobre suicídio, contexto social coreano e como a cobrança e a educação de lá refletem em crianças, adolescentes e adultos que não sabem lidar com fracasso. E que as empresas do kpop, assim como as gravadoras no ocidente, e empresas de forma geral, incluindo a que você trabalha, falham muito, na maioria das vezes, em perceber e entender doenças psicológicas, embora milhões de pessoas sofram algum tipo de transtorno e precisem de apoio e acompanhamento.  Porém toda vez que falamos de números e estatísticas parece que o estigma em relação a Ásia e ao kpop aumentam e estamos diante de um problema muito maior do que uma indústria e um continente. Se você está mal, busque ajuda, se você odeia algo profundamente, busque ajuda também, pois isso não faz bem, e se você estiver cogitando hitar na internet as custas de outra pessoa, lembre da camiseta do Frank Ocean: Por que ser racista, sexista, homofóbico e transfóbico se você pode apenas calar a boca?

 

 

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Sobre a autora

Camila Monteiro é jornalista e estudante de doutorado em música, mídia e fandoms. Ama cultura pop e é muito fã de Bangtan. Sua vida se divide em antes e depois que ela viu Park Jimin na sua frente.

Sobre o blog

Nesse espaço discutiremos o Universo Kpopper: fandoms, bandas, debuts, disbands, MVs, álbuns, tours, coreografias, Coréia e tudo que o K-Pop nos oferece. Entre visuals, rappers e vocalistas, ultimates e bias wrecker estabelecido(a)s, vamos refletir sobre as diferentes gerações do pop coreano, a influência na moda, beleza, cultura e como o K-pop muda a vida das pessoas.

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